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COLUNA DA GISELLI AVÍNCULA: A generosidade de ser professor

Texto 3

No início deste ano, uma amiga professora pediu que enviasse, por e-mail, um slide ou texto que havia partilhado com ela, tempos atrás, a respeito de um conteúdo disciplinar do ensino de Sociologia. Fui buscar o material na seção de itens enviados do e-mail pessoal e, curiosamente, localizei outra mensagem, uma que escrevera à minha professora de Prática de Ensino de Sociologia da faculdade de Educação no fim do ano de 2006 – ano que iniciara a docência no Magistério.

Surpreendo-me com o conteúdo das mensagens do e-mail. Primeiro, um sentimento de alegria e gratidão de constatar que temos professores universitários acolhedores. Mestres que não se insensibilizaram com as demandas, por vezes exaustivas, de ensino, pesquisa e extensão, e que resistem à automatização diante da pressão de serem produtivos, de atualizarem com recorrência a Plataforma Lattes a fim de obter contínuos financiamentos em pesquisas e nos programas de pós-graduação de que fazem parte.

Entretanto, fiquei negativamente impactada com o meu pedido de socorro à atenciosa professora. Destaco um trecho:

(...) Estou me achando uma péssima professora! Não consigo atingi-los. Ainda mais, tem uma turma da manhã (no qual o rendimento é um pouco melhor) que é do Ensino Médio regular que me hostiliza, não consigo manter o mínimo de silêncio na turma, toda aula tem um problema e até já chorei por causa dessa turma (não na frente deles). É impossível gostar de lecionar, eu quero sair do Magistério, não dá! Mas preciso continuar, por enquanto não consigo coisa melhor. O que fazer neste tempo até que eu consiga alguma coisa? Você, com sua experiência, por favor, me dê algumas orientações. Socorro!

É nítido, no trecho supracitado, que a aflição claramente apontada, tão comum aos professores recém-formados, não é insegurança do domínio de conteúdo e da transposição didática dos conhecimentos acadêmicos para o nível da Educação Básica. É a questão da indisciplina escolar e do desafio da autoridade do professor ser respeitada pelos alunos.

Com o passar dos anos, sem perceber, elaborei prioritariamente um “projeto de sobrevivência” ao Magistério que se trata do enfrentamento à indisciplina escolar. Todavia, a obstinada missão de disciplinar os alunos desviou minha atenção do real desafio do professor: potencializar o processo de ensino e aprendizagem.

Felizmente, tal percepção aclarou-se ao ser afastada da sala de aula, readaptada de função e reinserida em outra atividade escolar. As demandas de controlar a disciplina, preparar aulas, lecionar para muitas turmas, elaborar e corrigir avaliações me alienavam da autonomia e da reflexão da prática pedagógica. À medida que o contato com os alunos tornara-se mais selecionado, na biblioteca, como agente de leitura, pude enxergar o perfil e a especificidade desta geração de estudantes.

Para sinalizar como a sobrecarga e a solidão do trabalho docente pode promover o esvaziamento crítico sobre as relações entre educador e educando e, por conseguinte, a incapacidade de traduzir a indisciplina e o desinteresse dos alunos, transcrevo mais um trecho da troca de mensagens com minha professora da faculdade da Educação:

(...) Desculpe não ter respondido logo o seu e-mail. É porque quando estou dando aulas, não consigo fazer nada. Parece um ritual que exige isolamento e concentração, onde só me fixo nisso por alguns dias. Ainda é muito tenso pra mim esses dias. (...) Fiquei refletindo sobre as coisas que me disse, algumas eu já tenho até feito, como conversar com outros professores. Com alguns, vale a pena ouvir suas experiências e sugestões, em compensação, os outros... Preciso nem falar, né! O aluno, coitado... Para esses, é como o criminoso que senta na cadeira dos réus e os professores são os promotores que acusam.

Confesso que, passado o estranhamento da recém-formada, vesti a toga de promotora por inúmeras vezes, endossei o coro da inutilidade das disciplinas pedagógicas aprendidas nos bancos universitários e, assim, aumentava o abismo entre mim e os alunos. Conquanto, a problematização desta visão engessada potencializou-se ainda mais com a oportunidade de reinventar a atividade docente na função extraclasse.

Por isso, o primeiro passo é reconhecer que somos indivíduos e profissionais num contínuo processo de formação. Para tanto, cito Paulo Freire para ilustrar a autonomia do ser e o ato de generosidade para consigo mesmo: “O essencial nas relações entre educador e educando, entre autoridade e liberdades, entre pais, mães, filhos e filhas é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia. Me movo como educador porque, primeiro, me movo como gente”.

Referência:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 144 p.

(Sou a Giselli Avíncula, professora de Sociologia, mestra em Ciências Sociais e bacharelanda em Terapia Ocupacional. Hoje, atuo como agente de leitura. Alimento a teimosia da minha alma educadora, acredito na inteligência emocional e na potencialidade dos fazeres humanos para sensibilizar o potencial por conhecer.)